quinta-feira, 8 de setembro de 2011

HOMICÍDIO, UM CRIME INSOLÚVEL NO BRASIL.

Quando discuti aqui alguns aspectos da justiça criminal do Brasil, e critiquei o sentimento infundado de vingança que acomete boa parte da população quando nos referimos a pequenos delitos, fui acusado de dar atenção ao que não merece. A tese levantada era que, em vez de nos preocuparmos com o “direito dos bandidos” deveríamos nos preocupar com a “penalização dos bandidos”. Pois bem, para satisfazer a sanha dos caçadores de culpados, sugiro a leitura de uma matéria publicada neste domingo no Jornal O Globo, tratando da quantidade de homicídios – este sim um crime digno de identificação de autoria e máximo tratamento correicional – não esclarecidos no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A reportagem fala sobre uma tal de “Meta 2″, “uma determinação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para que todos os inquéritos de homicídios dolosos abertos até 2007 sejam concluídos ainda este ano”. Aparentemente, a medida é positiva, por dar celeridade a procedimentos que vem se arrastando há anos entre as polícias civis e os ministérios públicos estaduais. O resultado, porém, tem sido a filosofia de “fingir que faz” para que alguém fingir que está feito:

Em abril, quando o trabalho começou, o Rio acumulava 47.177 inquéritos em aberto. As vítimas eram, geralmente, moradores de áreas pobres e violentas, muitos deles com anotações criminais, presas preferenciais dos grupos de extermínio que agem nesses lugares. Na pressa de reduzir a pilha, alguns promotores cometeram erros crassos, facilmente descobertos no exame de páginas que provavelmente nem foram abertas para ensejar a decisão pelo arquivamento.
O servente Geílson Gomes de Carvalho, de 35 anos, foi retirado de casa e morto a pauladas por traficantes de Vigário Geral em 22 de junho de 1998. Convencida por um papa-defuntos, a então companheira da vítima, Maria do Carmo David de Souza, mentiu na delegacia ao dizer que Geílson, na verdade, fora atropelado. Ela queria receber o seguro do DPVAT, mas a armação foi desmascarada pelo irmão do morto, Joaquim de Carvalho, que confirmou e descreveu o crime.
Além de não apurar a fraude, a 39 Delegacia Policial (Pavuna) se esqueceu de retirar da capa do inquérito a classificação de "atropelamento", embora a própria fraudadora tivesse reconhecido a mentira em novo depoimento anexado ao volume. Em 9 de agosto deste ano, a promotora Andréa Rodrigues Amin pediu o arquivamento do caso. Motivo: prescrição por extinção de punibilidade, por se tratar de um "atropelamento" cuja pena máxima seria de quatro anos.
Andréa Amin, procurada pelo GLOBO, reconheceu o erro. Disse que não leu, realmente, as peças do inquérito que revelavam a fraude. Mas disse que, mesmo se tivesse lido e constatado o homicídio, teria pedido o arquivamento. A promotora, titular da 29 Promotoria de Investigação Penal (Pavuna, Vicente de Carvalho, Acari e outras áreas violentas), padece com 3.300 inquéritos da Meta 2 em aberto:
- Trabalho com duas delegacias que ainda não são delegacias legais. Os policiais, envelhecidos e mal pagos, ainda trabalham com máquinas de escrever. Se as famílias das vítimas não ajudarem, não há como chegar aos autores.
- Ajudar? Meu filho, você sabe onde moro? - reagiu a parente de uma das vítimas citadas, moradora da borda de uma favela, que prefere mesmo ver o inquérito arquivado, caso a polícia e o MP não encontrem os autores por conta própria.
Alguns promotores já desenvolveram métodos para arquivamentos em massa. É o caso de Janaína Marques $êa. Num conjunto de pedidos negados por juízes do TJ-RJ, aparecem 11 casos em que a decisão de Janaína era exatamente igual, mudando só o nome da vítima. Em nota, ela alegou que os textos são iguais porque "os fundamentos são os mesmos".
Uma característica se repete em praticamente todos os casos de arquivamento selecionados pelo jornal: os inquéritos são magros e se resumem à troca de carimbos entre a delegacia, que sempre pede mais prazo quando o atual está prestes a vencer, e os promotores, que os concede. De carimbo em carimbo, os casos acabam atingindo a prescrição, para alívio de todos. É menos um na prateleira.
O garçom Alexsander Lima Batista, de 22 anos, e o servente Alexandre Chaves do Nascimento, de 28, foram executados no dia 20 de janeiro de 2006 em Vicente de Carvalho. Como muitos outros, o caso parecia seguir a rota dos carimbos quando um comunicado reservado da Ouvidoria da Polícia ofereceu uma luz no fim do túnel: apontava (com detalhes) um grupo de extermínio liderado por um sargento da PM como responsável pelos assassinatos.
No início de agosto, a promotora Janaína decidiu que o melhor a fazer, sobre o caso, era esquecê-lo. Pediu o arquivamento alegando que "foram efetuadas diligências com o intuito de apurar o fato, sem contudo lograr-se êxito". No entanto, o exame do inquérito atesta que, mesmo depois do comunicado, a polícia não fez uma única diligência para apurar o caso.
O número de arquivamentos tende a crescer. Sérgio Pinto, que arquivou o caso do guarda municipal de Santa Cruz, admite que no último mês já pediu o mesmo para outros 292 casos. Ele defende a medida:
- Estamos arquivando para que os novos inquéritos detenham atenção especial em sua elucidação.
SP: tribunal arquiva 1.500 inquéritos
A prática de arquivar antecede a Meta 2. No 1 Tribunal do Júri de São Paulo, que concentra mais da metade dos casos de homicídio da cidade, só no ano passado foram arquivados 1.500 inquéritos. A grande maioria deles, cerca de 90%, é arquivada por falta de informações sobre a autoria do crime. E a maior parte desses crimes acontece em bairros pobres, em meio a famílias sem condição financeira ou social para clamar por Justiça.
O juiz Renato Chequini conta que, quando essas mortes ocorrem, seja por acertos de dívidas de drogas ou crimes cometidos em favelas e ruas, é raro haver investigação criminal. O juiz também se queixa da falta de uma política de proteção às testemunhas, o que inibe os depoimentos.
- Se a família da vítima for pobre, a chance de arquivamento é enorme. A testemunha protegida no Brasil é um caso de ficção, assim como o país não tem a cultura da polícia técnica. Quando um inquérito começa a ir e voltar, com papéis de um lado e outro, é sinal de que será arquivado - diz o juiz.

(Sim, o Ministério Público também tem as “mágicas” muitas vezes observadas nas polícias)

Com taxas de mais de 90% de homicídios com autoria desconhecida, qualquer discurso da existência de política de justiça criminal eficiente desce no ralo da demagogia.

Fonte:  O Globo/Abordagem Policial (Danillo Ferreira)

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