É impossível que um povo negue sua história: mesmo que se ressinta de acontecimentos perversos do passado, mesmo que adote medidas claras de anulação dos erros cometidos, ainda assim irá pairar quando nada a névoa cultural que germinou o que o povo é. No Brasil, parece que não perdemos a mania de tentarmos a todo custo alcançar o status de senhor, não qualquer senhor, mas senhor nos moldes do escravagismo, sujeitando outras pessoas aos nossos brios, vontades, vaidades e confortos.
Este elemento cultural sofre um sério agravante nas instituições militares, e a nós interessa observar as polícias militares, organizações das quais se espera o cultivo de conceitos como democracia, cidadania, ética, humanitarismo etc. Grande contradição, já que ainda é possível que as relações interpessoais no âmbito das PM’s sejam pautadas em uma lógica de submissão, vassalagem, servidão, ou, como dissemos, escravidão – no sentido de utilizar-se do outro como objeto de enaltecimento e utilidade a si próprio.
A legislação policial militar permite certos vácuos que podem ser ocupados pelo ímpeto senhorial, e aqui estamos nos referindo à relação entre superior hierárquico e subordinado, já que este último deve cumprir qualquer ordem emitida pelo primeiro, desde que não seja manifestamente ilegal. Entre o que é ilegal e o que é manifestamente ilegal há certa distância preocupante, entremeada por possibilidades ético-morais tenebrosas.
Significa dizer que o policial militar deve permanecer no posto de serviço após o horário de sua escala, caso seja determinado. Que deve esperar horas a fio a autoridade que presidirá uma solenidade, até que determinação em contrário seja estabelecida. Que deve participar de eventos que não estão de acordo com suas convicções, se determinado. Que deve manter-se em pé neste ou naquele local por este ou aquele tempo, conforme determinação. Ora, e se tais determinações servirem apenas à satisfação dos brios deste ou daquele senhor? Cumpra-se: não é manifestamente ilegal.
Extinguir a tradição legal do “manifestamente ilegal” possui implicações de eficácia nas ações policiais militares (eficácia, não eficiência). O termo continuará existindo enquanto as polícias precisarem se apresentar como realizadoras de algo relevante, sem desatar os nós internos. Se não há motivação ou adesão à proposta da gestão, é preciso mandar e alguém precisa parecer que está obedecendo (no mínimo). Aproveitando o incidente legal, cada senhor vai construindo seu engenho.
Fonte: Abordagem Policial (Danillo Ferreira)
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