Não cansamos de expor aqui no blog a lucidez de Luiz Eduardo Soares, um dos mais lúcidos e notáveis especialistas em segurança pública do país. Desta vez, Luiz Eduardo publicou, em seu perfil do Facebook, uma resposta dada a um interlocutor que o indagou sobre o tema descriminalização das drogas:
“Eis a carta que acabo de enviar a um jovem interlocutor do interior da Bahia, que me escreveu pelo e.mail do site, em resposta a suas questões sobre política de drogas. Achei que vale a pena socializar porque o tema é de interesse geral.
‘Prezado amigo,
Muito obrigado por sua mensagem e pelas palavras generosas. Fico feliz em saber que você está estudando essa problemática, que é tão complexa e urgente, e precisa de gente jovem inteligente e aberta, disposta a questionar e pensar com a própria cabeça.
O que posso lhe dizer, em síntese, é que não gosto de drogas, nem gostaria que outros gostassem ou usassem. As drogas não fazem bem, a não ser algumas delas quando usadas muito moderadamente e topicamente, como a maconha para certos tratamentos de câncer e outros, o vinho em pequenas doses para a circulação, a cerveja com moderação em certas situações, etc.. Mas, em geral, fazem mal. E mesmo quando fazem algum bem apreciável, têm seus efeitos nocivos paralelos, os chamados efeitos iatrogênicos. Ou seja, seria melhor que não houvesse drogas no mundo ou que, havendo, ninguém se interessasse por elas. Infelizmente, não é assim. Drogas existem, muita gente aprecia, consome, algumas pessoas o fazem para fins meramente recreativos e conseguem se controlar com boa e saudável disciplina, outros se viciam, tornam-se dependentes, estragam suas vidas e acabam se autodestruindo.
Como há demanda, há oferta e o dinheiro circula, tornando o negócio das drogas um dos mais lucrativos do mundo. Um dos mais lucrativos graças à proibição, que permite aos comerciantes elevar o preço e reduzir a presença da substância geradora dos efeitos psicoativos no produto. Os usuários recreativos ou dependentes pagam sem saber o que estão comprando, e não têm alternativas. Em geral, destroem-se mais pelos componentes que são adicionados às drogas procuradas do que pela ingestão da própria substância entorpecente ou alucinógena.
O dinheiro gira com mais velocidade, em mais quantidade, os males produzidos pelo consumo são enormes por causa sobretudo das condições impostas ao consumo pela clandestinidade, e tudo isso ainda não é nada diante das consequências trágicas da criminalização do consumo e da produção/distribuição, e da proibição das substâncias: a guerra urbana, com milhares e milhares de mortos, a corrupção de autoridades judiciais, políticas e policiais, etc… Ou seja, um horror.
Esse é o quadro atual. Há algo de aproveitável nesse quadro tenebroso? Bem, alguém poderia dizer (se morasse no mundo da Lua ou ignorasse o mundo real): pelo menos a probição impede as pessoas de se drogarem e, aqueles que se tornassem dependentes, de se destruírem. Errado. Como você sabe, compram-se drogas com a maior facilidade em todo o mundo industrializado não totalitário: Europa, EUA, Canadá, Europa, América Latina, na Rússia, no Oriente, inclusive no Brasil.
Ora bolas, diria meu avô, então para que manter esse inferno, com efeitos tão trágicos, tão desastrosos, se a proibição legal não se traduz em proibição prática? E atenção: isso acontece em todo lugar, ou seja, não é culpa de nossas polícias. As melhores polícias do mundo não conseguem colocar em prática a proibição. Por que? Porque é impossível, fora de um Estado totalitário, impedir o consumo individual varejista de bens desejados e providos numa dinâmica movida por interesses complementares. Impossível. Portanto, todo o debate está equivocado. É um blefe. A pergunta não é: “Devemos ou não permitir o acesso das pessoas às drogas?” A pergunta é: “Em que contexto é menos mal que esse acesso ocorra? Um contexto normativo, legal, institucional, em que esse acesso seja matéria de polícia e prisão? Ou um contexto em que seja matéria de saúde, educação, cultura, debate livre, sem hipocrisia, na sociedade?”
Por isso, caro amigo, as perguntas que você faz são importantes, inteligentes, mas estão supondo uma realidade que não existe, nem poderia existir: a realidade da proibição legal se aplicando sob a forma de impedimento de acesso das pessoas às drogas.
A legalização não garantiria nada, não resolveria o problema das drogas. Nada disso. Apenas ajustaria a lei à realidade e, com isso, suspenderia um genocídio em curso e a maior parte dos inúmeros efeitos dantescos gerados pelo proibicionismo (o qual não traz, repito, nenhum, absolutamente nenhum efeito positivo, nem mesmo, insisto, o bloqueio do acesso às drogas). Já seria uma contribuição histórica, extraordinária. E então, devolvidos à real situação (muitas pessoas desejam drogas e as consomem), nós, como sociedade, tentaríamos ajudar a que os dependentes sofressem menos, os que corressem riscos de se tornar dependentes encontrassem apoios antes de despencar, e que os consumidores recreativos não problemáticos se divertissem com mais segurança, informação e cuidados.
O melhor exemplo dá-se com o álcool, nossa droga mais grave, de longe a mais danosa em escala nacional (temos cerca de 15 milhões de alcoólatras no Brasil): ninguém minimamente razoável está propondo a criminalização da produção e do comércio, ou do consumo, e a proibição do acesso. Ainda bem. Já pensou se, além de alcoolismo epidêmico nós tivéssemos mais uma guerra contra traficantes de álcool? Não reduziríamos o alcoolismo e, ainda por cima, viveríamos um inferno de violência e prisões ainda mais grave, ainda mais devastador.
Forte abraço e sucesso em suas pesquisas,
Luiz Eduardo Soares’”
Fonte: Abordagem Policial
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