domingo, 21 de julho de 2013

A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO ÂMBITO DO DIREITO MILITAR.


Por vezes, a conduta criminosa enseja uma gravidade tal que o valor do objeto passa a ser de somenos importância. Disso decorre a inaplicabilidade da bagatela aos crimes contra a administração pública.

O Código Penal Militar prevê expressamente para o crime de lesão corporal dolosa a possibilidade de o juiz, em razão do grau da lesão, considerar a infração como disciplinar (art. 209, § 6º), deixando, assim, de aplicar pena.

É a chamada lesão corporal levíssima, norma exclusiva do CPM, posto que não há semelhante previsão na legislação penal comum.

Referida norma materializa o expresso reconhecimento, no âmbito do Direito Penal Militar, do princípio da insignificância ou bagatela, hoje tão difundido e discutido pela doutrina e jurisprudência penalistas.

O princípio da insignificância ou bagatela atua como instrumento integrador das normas penais excessivamente abertas, que acabam abarcando uma série de condutas para as quais a aplicação de sanção penal tornaria desproporcional a reprimenda estatal, em face da irrelevância da conduta do agente ou da lesão ao bem jurídico protegido pena norma legal.

A ideia do princípio da insignificância decorre da divergência entre o conceito material e o conceito formal de crime, albergando o primeiro somente as condutas efetivamente lesivas ao bem jurídico tutelado, ao passo que o segundo acolhe todas as condutas que se subsumem ao tipo penal.

Isso ocorre porque muitas condutas, embora previstas na lei, somente poderão ser consideradas como crime, caso venham a efetivamente ferir bens jurídicos relevantes. Daí decorre a necessidade de a lesão ao bem jurídico ser efetiva e relevante para que ocorra o crime em seu conceito material.

Tal princípio, idealizado por Claus Roxin, em 1964[1], consolida o princípio do nullum crimem sine iniuria (Não há crime sem dano). Em outras palavras, não há crime sem dano relevante a bem jurídico.

Doutrina e jurisprudência nacionais são unânimes em reconhecer a existência e a importância do princípio da insignificância. Sua aplicação a inúmeros crimes comuns (como nos crimes contra a administração pública), no entanto, ainda é motivo de acalorado debate acadêmico.

No que se refere ao Direito Penal Militar, este princípio merece especial atenção, pois é expressamente reconhecido em diversas outras passagens do Código Penal Militar:

-   art. 209, § 6º - lesão corporal levíssima;

-   art. 240, §§ 1º e 2º - furto atenuado;

-   art. 250 - apropriação indébita;

-   art. 253 - estelionato e outras fraudes;

-    art. 254, par. único - receptação;

-   art. 255, par. único - perdão judicial no caso de receptação culposa;

-   art. 260 - dano atenuado;

-  art. 313, § 2º - cheque sem fundos atenuado.

Nestes casos, evidentemente, a legislação penal militar mostra-se muito mais consentânea com a moderna doutrina e jurisprudência, uma vez que reconhece expressamente a existência do princípio da insignificância.
Assim, em se verificando a tipicidade formal de tais delitos, fica ao julgamento do magistrado a aferição do desvalor da ofensa e eventual descaracterização da conduta de crime para infração disciplinar.

Isso porque, ontologicamente, crime militar e transgressão disciplinar possuem mesma natureza, posto afrontarem os mesmos valores ou deveres funcionais. No entanto, em atendimento ao princípio da proporcionalidade, a insignificância da conduta (ou do resultado) pode ensejar outra resposta jurídica (sanção) por meio do Direito Administrativo Disciplinar.

Neste sentido a lição de Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr.[2]:

"Ao lado do ilícito penal coloca-se o ilícito administrativo, que não dispõe de suficiente gravidade para ser erigido em ilícito penal. A diferença entre ambos, portanto, não é ontológica: somente de grau. A falta disciplinar representa um minus com respeito ao crime. E a pena criminal um plus com relação à sanção disciplinar".

A questão que se ressalta, contudo, é a possibilidade (ou não) de aplicação deste consagrado princípio aos demais crimes militares, em cujos tipos penais não se encontre expressamente estampado.

A doutrina e a jurisprudência se dividem. Alguns autores, como o culto magistrado da Justiça Militar estadual de São Paulo, Ronaldo João Roth[3], defendem a possibilidade de sua aplicação a todos os crimes militares indistintamente.

Ao diferir regra de princípio jurídico, Roth leciona que “[...] como princípio, devemos reconhecer a aplicação da insignificância também nas lesões corporais culposas e em outros delitos ainda que expressamente não o prevejam, como ocorre nos delitos contra a Administração Pública (peculato, falsificação, etc.), nos delitos contra a honra, etc.”.

Outros autores, como Neves e Streifinger[4] entendem que sua aplicação fora dos casos expressamente previstos em lei é relativa, “ficando ao jugo do operador, mormente o juiz, aplicar tal princípio quando a lei, atendendo ao critério da subsidiariedade, deixar ao discricionarismo do magistrado invocar a bagatela”.

Há outros, ainda, que repudiam inteiramente sua aplicação no âmbito da Justiça Militar sob a alegação de que os crimes militares ofendem bens jurídicos outros, além daqueles tutelados pelo tipo penal, em decorrência dos artigos 9º e 10 do CPM, qual seja, a regularidade das Instituições Militares.

Em nossa opinião, o uso deste princípio, enquanto postulado de política criminal[5], coaduna-se perfeitamente com o Direito Penal Militar. No entanto sua aplicação deve levar em conta se o bem jurídico foi efetivamente ofendido, a extensão do dano e a periculosidade e reprovabilidade da conduta. Há casos em que, caso seja admitida sua aplicação, poder-se-á acarretar sérios danos às Instituições Militares, não sendo seu uso irrestrito medida recomendável.

Veja-se que, mesmo nos casos em que a insignificância é expressamente prevista no Codex castrense, cabe ao juiz, segundo seu livre convencimento diante do conjunto probatório, conceder ou não o beneplácito legal.

É o que diz o § 6º. do art. 209, por exemplo:

"§ 6º No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar.  (grifamos)"

Nesse sentido aponta a jurisprudência:

"CRIME DE LESÃO CORPORAL – LESÃO CONTUSA NA REGIÃO OCCIPTO-PARIETAL COM CORTE DE 4 CM – IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR-SE LESÃO LEVÍSSIMA E DESCLASSIFICAÇÃO PARA TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR, NOS TERMOS DO ART. 209, § 6º, DO CPM – IMPOSSIBILIDADE DE ABSOLVIÇÃO PELA PRESCRIÇÃO EXECUTÓRIA RETROATIVA, NOS TERMOS DO ART. 439, LETRA “F” DO CPPM.

O Código Penal Militar não define o que venha a ser lesão levíssima, conceito que ficará, pois, em cada caso concreto, ao critério subjetivo do juiz, dentro de seu convencimento pessoal e, sobretudo, igualmente dentro do princípio da razoabilidade.

[...]

(TJMMG - Apelação nº 2.358 – Relator: Juiz Cel PM Jair Cançado Coutinho – Pub.: 31/05/2005) (grifamos)"

Destarte, em nosso entendimento, nem todos os crimes militares admitem a idéia de insignificância, pois o grau da lesão ou ofensa ao bem jurídico tutelado é impalpável ou imensurável, por exemplo, nos casos de crimes contra o serviço e o dever militar, ou nos crimes contra a autoridade ou disciplina militar.
Pensemos nos crimes previstos nos artigos 157 (violência contra superior), 160 (desrespeito a superior) e 163 (recusa de obediência). Como dizer, sem causar gravíssimo dano à hierarquia e à disciplina, que tais crimes comportam a idéia de insignificância? Não se admite tal possibilidade.  Ou o subordinado respeita seu superior e acata suas ordens (legais), ou ocorre grave violação da disciplina que ultrapassa a seara administrativa, carecendo de reprimenda penal.

Ou ainda os delitos previstos nos artigos 183 (insubmissão) e 187 (deserção). Parece-nos inequívoco que tais crimes não comportam a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância por sua própria natureza, visto se tratarem de delitos de mera conduta.

Vejamos ainda outros casos específicos que, em nossa análise, não comportam a aplicação do princípio em testilha.

"- Art. 290, CPM - Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar.

Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, até cinco anos".

Doutrina e jurisprudência majoritárias caminham no sentido de que a quantidade de droga é irrelevante para a configuração deste delito. Destaque para as decisões do Superior Tribunal Militar – STM :

"Ementa: ENTORPECENTE. PORTE E CONSUMO. QUANTIDADE ÍNFIMA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA OU BAGATELA. ATIPICIDADE DO ATO SOLITÁRIO DE USAR OU FUMAR. CONSUMO E PORTE DE SUBSTANCIA ENTORPECENTE (CANNABIS SATIVA L.) EM LUGAR SUJEITO A ADMINISTRAÇÃO MILITAR. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA BAGATELA VEZ QUE A CIRCUNSTÂNCIA DE SER MÍNIMA A QUANTIDADE APREENDIDA NÃO AFASTA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME, VINCULADO ESTE AS PROPRIEDADES DA DROGA, AO RISCO SOCIAL E DE SAÚDE PÚBLICA, NÃO À LESIVIDADE EM CADA CASO CONCRETO (DOUTRINA E PRECEDENTES DA SUPREMA CORTE). A LEI PENAL MILITAR NÃO PUNE O AGENTE PELO SÓ FATO DE TER FEITO USO DO ENTORPECENTE, MAS SIM POR GUARDÁ-LO OU TRAZE-LO CONSIGO. A RUBRICA MARGINAL DO ART. 290 DO CPM NÃO PRODUZ CONSEQUÊNCIAS INCRIMINADORAS PORQUE NÃO CONTEMPLADO NO ELENCO DO PRECEITO PRIMÁRIO O NUCLEO 'USAR'. IMPROVIDO O APELO E MANTIDA A CONDENAÇÃO DO AGENTE QUE PORTAVA A DROGA E EM PODER DE QUEM APREENDIDA. PROVIDA A IRESIGNAÇÃO POR ATIPICIDADE QUANTO AO AGENTE QUE APENAS FEZ USO EVENTUAL E INSTANTÂNEO DA SUBSTÂNCIA. DECISÃO UNÂNIME.

(STM – Acórdão Num: 1992.01.046850-1 UF: DF Decisão: 25/05/1993 - Ministro Relator: PAULO CESAR CATALDO)

Ementa: ENTORPECENTE (MACONHA) GUARDA, PARA CONSUMO PRÓPRIO, DE PEQUENA QUANTIDADE. IMPROCEDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA BAGATELA, POR NÃO ESTIPULAR O TIPO PENAL A QUANTIDADE QUE CARACTERIZA O DELITO. IMPOSSIBILIDADE DA REVOGAÇÃO, PELA LEI 6.368/76, DO ARTIGO 290, DO CODIGO PENAL MILITAR, POR SER LEI ESPECIAL, CUJA REVOGAÇÃO (DERROGAÇÃO OU AB-ROGAÇÃO), SOMENTE, PODE OCORRER POR OUTRA LEI ESPECIAL QUE, ESPECIFICAMENTE, O DECLARE. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO UNIFORME.

(STM – Acórdão Num: 1993.01.046875-7 UF: DF Decisão: 11/03/1993 - Ministro Relator: WILBERTO LUIZ LIMA)"

Ricardo Vergueiro Figueiredo, Juiz de Direito da 2ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar em São Paulo, anota, em abalizado artigo[6] que o princípio da insignificância, ao menos no que diz respeito a situações fáticas que envolvam substâncias entorpecentes, não deve incidir no âmbito da Justiça Militar da União ou dos Estados.

Para o autor, este crime tem a saúde pública como objeto jurídico principal ou imediato, mas também protege outros bens jurídicos, como o direito à vida, juventude, segurança coletiva, ordem pública, família, etc.

Recentes decisões do supremo Tribunal Federal têm confirmado esse entendimento:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. POSSE DE REDUZIDA QUANTIDADE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE EM RECINTO SOB ADMINISTRAÇÃO CASTRENSE. INAPLICABILIDADE DO POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA DA LEI CIVIL Nº 11.343/2006. IMPOSSIBILIDADE. ESPECIALIDADE DA LEGISLAÇÃO PENAL CASTRENSE. ORDEM DENEGADA. 1. A questão da posse de entorpecente por militar em recinto castrense não é de quantidade, nem mesmo do tipo de droga que se conseguiu apreender. O problema é de qualidade da relação jurídica entre o particularizado portador da substância entorpecente e a instituição castrense de que ele fazia parte, no instante em que flagrado com a posse da droga em pleno recinto sob administração militar. 2. A tipologia de relação jurídica que se instaura no ambiente castrense é incompatível com a figura própria da insignificância penal, pois, independentemente da quantidade ou mesmo da espécie de entorpecente sob a posse do agente, o certo é que não cabe distinguir entre adequação apenas formal e adequação real da conduta ao tipo penal incriminador. É de se pré-excluir, portanto, a conduta do paciente das coordenadas mentais que subjazem à própria tese da insignificância penal. Pré-exclusão que se impõe pela elementar consideração de que uso de drogas e o dever militar são como água e óleo: não se misturam.

(STF - HC 104923 / RJ - Relator: Min. CELSO DE MELLO - Relator p/ Acórdão: Min. AYRES BRITTO - Julgamento: 26/10/2010)

Ementa: HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL. TIPICIDADE PENAL. JUSTIÇA MATERIAL. JUÍZO DE ADEQUAÇÃO DE CONDUTAS FORMALMENTE CRIMINOSAS, PORÉM MATERIALMENTE INSIGNIFICANTES. SIGNIFICÂNCIA PENAL. CONCEITO CONSTITUCIONAL. DIRETRIZES DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. ORDEM DENEGADA. 1. O tema da insignificância penal diz respeito à chamada “legalidade penal”, expressamente positivada como ato-condição da descrição de determinada conduta humana como crime, e, nessa medida, passível de apenamento estatal, tudo conforme a regra que se extrai do inciso XXXIX do art. 5º da CF, ipsis litteris: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. É que a norma criminalizante (seja ela proibitiva, seja impositiva de condutas) opera, ela mesma, como instrumento de calibração entre o poder persecutório-punitivo do Estado e a liberdade individual... 12. As presentes diretivas de aplicabilidade do princípio da insignificância penal não são mais que diretivas mesmas ou vetores de ponderabilidade. Logo, admitem acréscimos, supressões e adaptações ante o caso concreto, como se expõe até mesmo à exclusão, nesses mesmos casos empíricos (por exemplo, nos crimes propriamente militares de posse de entorpecentes e nos delitos de falsificação da moeda nacional, exatamente como assentado pelo Plenário do STF no HC 103.684 e por esta Segunda Turma no HC 97.220, ambos da relatoria do ministro Ayres Britto). 13. No caso, nada obstante a reduzida expressividade financeira dos bens objeto da tentativa de furto, o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente servia muito mais como um nocivo estímulo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário.

(STF - HC 111017 / RS - RIO GRANDE DO SUL - HABEAS CORPUS - Relator: Min. AYRES BRITTO - Julgamento: 07/02/2012)"

-  Crimes contra a Administração Militar.

Nestes crimes protege-se, especialmente, a regularidade de funcionamento da Administração Pública Militar. Daí assemelham-se aos crimes contra a Administração Pública previstos no Código Penal comum.

Sobre estes delitos, doutrina e jurisprudência majoritárias não admitem a aplicação do princípio da insignificância. Acerca do peculato (art. 303, CPM e art. 312, CP), por exemplo, Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr.[7] lecionam, citando Nelson Hungria, que “é punido o peculato menos porque seja patrimonialmente lesivo do que pela quebra de fidelidade ou pela inexação no desempenho do cargo público; mas é absolutamente indispensável à sua configuração o advento de concreto dano patrimonial”.

Concordamos plenamente com tal posicionamento, na medida em que a conduta enseja uma gravidade tal que o valor do objeto passa a ser de somenos importância. Disso decorre a inaplicabilidade da bagatela aos crimes contra a administração pública.

Por exemplo, calotas utilizadas para decorar as rodas dos carros são peças extremamente baratas e podem custar (o jogo completo) de R$ 15,00 (quinze reais) a R$ 20,00 (vinte reais). Imagine que seu carro foi recolhido por alguma infração de trânsito (p. ex: estacionar em local proibido) e ao chegar ao pátio para retirar seu veículo, você constata a falta das calotas, subtraídas pelo policial militar que apreendeu seu veículo, ou por aquele que faz a segurança da instalação. Independentemente do valor das calotas, a gravidade do fato impõe, em nosso modo de pensar, medida repressiva na esfera penal, sendo incompatível a idéia de sanção meramente administrativa.

Vejamos as jurisprudências a seguir, que ilustram o exemplo acima:

"Comete o crime de peculato impróprio, também denominado peculato-furto, o policial que subtrai peças de uma motocicleta furtada e que foi arrecadada em razão de suas funções. Também cometem o crime de peculato impróprio os policiais que concorrem para que o colega, chefe de sua equipe, subtraia as peças de motocicleta arrecadada em razão do cargo. (RT 689/382)".

O chamado peculato próprio bifurca-se no peculato-apropriação e no peculato-desvio; no primeiro o agente comporta-se como se tivesse o domínio da coisa e no segundo dá destinação diversa à coisa, em proveito seu ou de outrem, mesmo sem animus rem sibi habendi ou com animus restituendi. Por isso, na doutrina tradicional, tem-se entendido que não é admissível a figura da compensação, pois a administração pública só perde a disponibilidade de seus bens quando expressamente o consinta, ou a lei administrativamente o autorize. O que importa nesse crime não é tanto a lesão patrimonial, mas, sobretudo, a ofensa aos interesses da administração de que são guardiões os funcionários, destinatários de lealdade sem fraquezas e fidelidade sem vacilações. (LEX 238/315-317;TJ/SP, j. 27/09/2000) (grifos nossos)

Em outros delitos contra a administração, como a concussão (art. 305, CPM e art. 316, CP) ou a corrupção passiva (art. 308, CPM e 317, CP), de forma alguma, em nosso modo de ver, pode ser invocado o princípio da insignificância. Tais delitos são classificados como de mera conduta, e, portanto, se consumam com a simples adoção de um comportamento reprovável por parte do agente.

Na concussão, basta a exigência de qualquer vantagem, que nem sequer precisa ser de cunho patrimonial, para a consumação do delito. Desta forma, se o militar exige R$ 20,00 (vinte reais) da vítima ou se exige R$ 20.000,00 (vinte mil reais), o delito está formalmente e materialmente consumado em ambas as hipóteses.

Da mesma forma ocorre na corrupção passiva. Se o militar solicitar, receber ou aceitar promessa de recebimento de qualquer vantagem indevida, no exercício da função ou em razão dela, cometerá o crime, independentemente do valor (ou desvalor) da vantagem ilícita, que nem precisa ser patrimonial.

Assim, forçoso reconhecermos a existência, incidência e importância do princípio da insignificância ou bagatela no âmbito do Direito Penal Militar, mas seu uso por parte dos nobres magistrados castrenses deve ser feito com a necessária ponderação sobre os elementos acima anotados.

Sua aplicação a todo e qualquer delito, de forma generalizada, pode trazer consequências danosas indesejáveis, como acarretar descrédito na Justiça Militar, estimular a prática de delitos tidos como “leves” sob o argumento da insignificância, bem como sentimento de impunidade, ocasionando uma indesejável flexibilização da hierarquia e da disciplina nas Instituições Militares.

Fonte:  Jus Navigandi (Fábio Sérgio do Amaral)

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