Não é novidade que aos policiais militares se é reservada uma condição menor de cidadania.
Está bem consolidado na Constituição (CRFB/88) e na Legislação Penal Militar editada ainda no final dos anos 60 e início dos 70, que foi “recepcionada” pela própria CRFB/88, uma contradição aparente.
Tais leis são passíveis de tantos questionamentos fundamentais, que as defesas deste estado de coisas socorrem-se de argumentos pouco substanciais, do tipo:
1 – o dogmático, “o militar é diferente do civil”;
2 – o vago, “a vida militar regida pela hierarquia e disciplina”;
São argumentos sonoramente impactantes, mas que nada explicam e se impõem exatamente porque, ao não explicar, confundem.
Se debruçarmos sobre o primeiro, não conseguiremos ir muito longe, afinal, ao não existir uma definição do que é ser ser militar, como podemos explicar que ele é diferente do civil. E o que é ser civil, é não ser militar? E, logicamente, ser militar é não ser civil? Portanto, o que quer dizer ser “o militar diferente”? Não temos essa resposta, até hoje. Juridicamente ela não existe.
Já no segundo caso, não existe confusão, mas sim uma tentativa de explicar o inexplicável, pois, dizer que a vida militar é regida pela hierarquia e disciplina é “chover no molhado”, pois desde que o homem, há muitos anos, resolveu viver em sociedade, cedendo parte dos seus direitos individuais em prol do coletivo, ele vive sob o manto da hierarquia e disciplina. Mesmo a organização familiar, por mais informal que já tenha sido, sempre foi regida por hierarquia e disciplina. Como os pais poderiam educar os filhos sem elas? E o pátrio poder? E no serviço público, o que são os princípios e as normas?
Por não vivermos em uma anarquia e após todos os avanços dos últimos séculos que serviram à formação do Estado moderno...
Voltando à legislação, deparamo-nos com situações inaceitáveis por qualquer cidadão, como a supressão de direitos e garantias fundamentais, como a restrição do direito ao Habeas Corpus. O HC serve para proteger o direito à liberdade de ir e vir de todos cidadãos contra a arbitrariedade do Estado, contra a prisão ilegal, seja ela qual for. Então reflitamos, preliminarmente:
1 – o cidadão pode ser preso somente em caso de crime previsto na legislação penal comum;
2 – o “cidadão” policial militar pode ser preso em 3 hipóteses: a) Em caso de crime previsto na legislação penal comum; b) Em caso de crime previsto nos códigos militares: c) Em caso de falta disciplinar;
Ao cidadão comum, que só pode ser preso em caso de crime comum, está reservado seu direito a defender-se da prisão ilegal. Já ao policial militar, somente poderá se defender de uma prisão ilegal se essa ocorrer na esfera penal comum e militar. Caso a prisão ilegal ocorra na esfera administrativa, ele não poderá se defender. Disso podemos inferir:
Ter seu direito de ir e vir cerceado por uma prisão administrativa ilegal é algo menos grave que o ter por uma prisão criminal? b) A administração militar estadual é infalível, por isso é desnecessário que o militar tenha direito ao HC, pois nunca irá haver prisão ilegal? c) Ou o direito à liberdade de ir e vir, apesar de ser tão importante para qualquer um dos milhões de cidadãos brasileiro relativiza-se no caso dos milhares de policiais militares? d) Os policiais militares são cidadãos?
Se pensarmos que a adoção da Lei 9.099 foi comemorada como um grande avanço – e o é até hoje - pois, dentre outras coisas, relativizava o encarceramento em caso de crimes com penas mais brandas, como justificar uma prisão administrativa, se:
a) Sequer existe crime, mas sim uma falta disciplinar, e:
b) Com tudo isso, ainda não é possível defender-se da prisão por meio de habeas-corpus;
Questão totalmente incongruente.
Pontue-se nesse momento, que não se questiona a legislação militar como um todo, posto que necessária à correta administração das Forças Armadas e suas especificidades de preparação para a guerra! Situação extrema que exige normatização muito específica. Mas que não pode ser aplicada ou considerada análoga à situação das polícias militares estaduais, que exercem atividade eminentemente civil – já que protege a sociedade civil – e a normalidade do policiamento de segurança pública não é a convivência bélica.
Guerra é algo afeito aos exércitos, que cuidam da segurança externa de um país, em nosso caso, as polícias militares estaduais são responsáveis pela segurança interna, o contrário.
Somente para exemplificar, parece ser extremamente óbvio que, em uma guerra, não exista carga horária definida, intervalo intrajornadas obrigatório, principalmente no momento de uma invasão ou de um bombardeio...
Voltando ao tema, volvemo-nos – a título de ilustração do disparate - à legislação penal militar, e sua graciosidade, quando prevê que crimes militares são os cometidos por militar contra militar. Se associarmos isso ao fato de termos crimes previstos na lei militar que também o são na legislação penal comum, aí teremos uma questão mais ampla: se dois militares começarem a se agredir, lesionando-se mutuamente, estaremos diante de uma situação de crime militar. Afinal, é um militar contra outro militar. Se esses militares forem casados e a briga for entre marido e mulher militar? Pela inteligência da lei penal militar, estamos sim diante de um crime militar. É possível que alguém discorde e argumente o contrário, mas a Lei está em vigor e estabelece essa situação, tendo sido recebida pela Constituição de 1988.
Logo, uma briga entre marido e mulher deverá ser processada e julgada como crime militar. isso não parece ser o mais razoável, mas consiste em uma característica do militarismo.
Estamos diante de um fato que instiga a reflexão.
Por outro lado, os militares estaduais também se submetem à uma infinidade de leis de caráter eminentemente civis, mesmo sendo “militares e diferentes dos civis” e “estarem submetidos à HIERARQUIA E DISCIPLINA MILITAR, que caracterizam a ORGANIZAÇÃO MILITAR”. Qual a razoabilidade, proporcionalidade e cidadania, de ser o militar juridicamente diferente do civil, por estar submetido aos regulamentos militares, e ao mesmo tempo também ser regido por regulamentos civis? Resta dúvidas que essa submissão do militar aos regulamentos civis e militares, ao mesmo tempo, só lhes trazem menos direitos de cidadania? Não se está aqui criticando os regulamentos civis, que não se reste dúvidas quanto à real motivação deste texto.
Um dos pontos culminantes é a matemática por trás do sopesamento entre as leis militares e civis aplicadas aos policiais militares, pois via de regra, os resultados apontam à uma considerável perda dos militares frente aos civis.
Muito se fala em desmilitarização, é verdade que a questão precisa ser debatida. Há falhas e hiatos enormes e gritantes, que são desconsiderados e ignorados. Existe um problema de tratamento jurídico dos militares, que afeta frontalmente o que deveria ser a sua cidadania, esse é um aspecto relevante, talvez o mais relevante. Mais que a questão da desmilitarização, afinal, como dito, ninguém sabe o que é ser militar juridicamente. Conceitos não jurídicos poucos acrescentam ao debate. É possível enfrentar essa problemática sem sequer tratar exatamente da questão “desmilitarizar/militarizar”, basta rever o sistema de leis dos policiais militares. É possível sim, mudar e assegurar a cidadania. Talvez não seja a solução dos problemas da segurança pública, mas, sem dúvidas, está a compor o “rol” de soluções, uma vez que a formação de uma polícia cidadã de verdade necessita que seus integrantes sejam, também, cidadãos.
Mais ainda existe muita resistência à mudança.
Se deve ou não desmilitarizar é uma discussão mais complexa do que a apresentada aqui. Existe, não sem motivo, toda uma resistência e repulsa de alguns setores ao que se viveu no país durante desde o regime militar – por acaso, recentemente a sessão que declarou vaga a presidência da república em 1964 foi anulada pelo legislativo – e que entendem ser a polícia militar um “ranço” desse período. Mas estes que assim agem poderiam lembrar que o policial militar é um cidadão e merece ter garantida sua cidadania (?), afinal, não é correto culpá-la por algo que ela não foi protagonista, pois no regime militar o poder central e absoluto cabia às forças armadas e não às Policias Militares.
Aqui temos uma importante questão:
Tanto os que são favoráveis à desmilitarização, quanto os que se lhe opõem, em seus debates nunca tratam dessa ausência de cidadania à qual se relega o policial militar. Atacam e/ou defendem a desmilitarização, mas, infelizmente pouco defendem ou lembram do policial militar e da sua frágil cidadania.
Por conta do “ranço”, vemos uma enorme injustiça com as polícias militares, pois sabemos que NENHUMA INSTITUIÇÃO PÚBLICA OU PODER regularmente em funcionamento à época, se opôs ao regime instalado, mas ninguém os relacionam ao regime de exceção, como fazem com as polícias militares, que, ao que parece, herdaram a maior parcela de culpa deste passado recente. Querer por todo o “ranço” do regime militar apenas nas polícias militares é de uma imprecisão enorme.
Enquanto isso, os policiais militares e a sociedade sofrem as consequências: Será que essa situação não interfere no modo como o policial enxerga a sociedade, a si mesmo e ao modo de desempenhar sua função? Como termos uma polícia do século XXI, se ela é regrada por uma legislação que mal se consegue alinhar com os avanços do século XX?
Artigo escrito por Eduardo Marcelo Silva Rocha
*Contato: eduardomarcelosilvarocha@yahoo.com.br
Fonte: Blog do jornalista Cláudio Nunes
Nenhum comentário:
Postar um comentário