Tem sido mostrado que o policial, no exercício de suas funções, age a partir de uma lógica própria que pode implicar até mesmo em inversão dos formalismos legais (Menandro, 1979, 1982; Paixão, 1982; Benevides, 1983; Pinheiro, 1983; Anistia Internacional, 1990; Pinheiro, 1991; Pinheiro, Izumino & Fernandes, 1991).
Qualquer estudo sobre a atividade policial no Brasil não pode deixar de considerar o fato de que, há mais de 20 anos, as polícias militares estaduais estão submetidas à centralizada coordenação e subordinação do Exército, vigorando inclusive uma justiça intra-corporação para os policiais militares. Conseqüência inevitável é que a Polícia Civil e a Polícia Militar isolaram-se política e administrativamente, com a relação entre as duas organizações caracterizando-se no mínimo pelo desprezo, chegando até à hostilidade aberta (ver a respeito, Pinheiro, 1983; Fischer, 1985; Pinheiro & Sader, 1985; Pinheiro, 1991).
Fischer (1985) aponta um tema básico a respeito das relações entre as duas organizações policiais:
Nunca ficou suficientemente precisa a linha que delimita a atuação de ambas as organizações. E, como se o controle social fosse constituído de despojos a serem disputados, cada uma procurou apropriar-se de um território onde exercer as atividades que, por premissa, definem sua existência. (p.31).
Há evidências de que expressivos setores da população têm uma percepção negativa do policial, ainda que curiosamente sejam favoráveis ao aumento da repressão (Miranda Rosa, Miralles & Cerqueira Filho, 1979; Benevides, 1983; Menandro & Souza, 1991; Menandro, 1992). Coloca-se a questão de saber se o cidadão policial está ciente dessa percepção negativa e se é sensível à hostilidade da opinião pública. As relações da polícia com os vários tipos de imprensa são conflitantes, variando da denúncia à conivência. Impossível deixar de reconhecer, adicionalmente, uma realidade de vida do policial comum plena de dificuldades em termos de remuneração e de condições de trabalho.
Este trabalho, fugindo um pouco da preocupação de identificar e denunciar o inaceitável nos procedimentos policiais - preocupação norteadora de inúmeros trabalhos sobre o tema, inclusive de nossa autoria - pretendeu levantar informações sobre o cidadão policial. Interessamo-nos fundamentalmente em conhecer como o policial (no caso, policial militar) percebe determinadas características de sua atividade profissional e como compreende a relação entre esta atividade e certos aspectos da sociedade em que vive.
MÉTODO
PARTICIPANTES
Cem policiais militares do sexo masculino, com idade predominando na faixa entre 26 e 35 anos (47%; 28% mais novos e 24% mais velhos), casados (64%), com 1º ou 2º graus de escolarização (46% e 47%, respectivamente). Quanto à graduação e à ocupação, todos eram sub-oficiais (51% soldados; 16% cabos e 27% sargentos) e 47% atuavam no policiamento ostensivo. Estavam na PM há menos de 5 anos 29% deles, entre 5 e 10 anos 22% e os restantes há mais de 10 anos. É importante assinalar que 83% dos participantes possuíam cinco ou mais dependentes.
TÉCNICA
Depois de vetada a realização de entrevistas optou-se pelo uso de um questionário, previamente analisado e aprovado pelo Comando da Polícia Militar do Espírito Santo. O questionário incluiu questões que variaram desde informações pessoais, passando pela avaliação das condições existentes para o exercício profissional, até julgamentos sobre a legalização da pena de morte e a avaliação que a sociedade faz a respeito do trabalho do policial.
CONTEXTO DE APLICAÇÃO
O questionário foi aplicado nas dependências da própria Polícia Militar, estando presente nas sessões um oficial PM. Foi ressaltado o caráter anônimo do questionário e o sigilo das informações prestadas, e foram esclarecidas perguntas a respeito do assunto. O Comando não teve acesso aos questionários depois de preenchidos pelos policiais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Como é impossível tratar de modo global todas as informações colhidas, dados os limites aqui impostos, selecionamos as que julgamos mais expressivas em relação à avaliação do trabalho do policial. Uma análise mais detalhada de outros aspectos poderá ser encontrada em Menandro e Souza (1990).
1) SOBRE O INGRESSO NA POLÍCIA MILITAR
Vocação e/ou gosto pelo militarismo foram apontadas por 48% dos PMs como motivos de seu ingresso na corporação, enquanto 26% citaram o desemprego. Tinham parentes na PM 43%, e 77% afirmaram ter tido outra atividade profissional antes do ingresso na corporação. Se o contato com parentes PMs pode explicar em parte a "vocação" manifestada, o pequeno número de sujeitos que iniciaram sua vida profissional na PM depõe contra a veracidade da indicação de ingresso por "vocação" (mera racionalização?). Como atenuante deve-se reconhecer que as condições de origem social do PM forçariam ingresso precoce no mercado de trabalho para menores e só mais tarde seria possível o ingresso na PM.
2) SOBRE A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO TRABALHO
Quase a totalidade dos participantes (99%) indicaram que o trabalho do policial é importante para a sociedade, mas apenas 24% deles responderam que a sociedade reconhece esta importância (vale lembrar aqui que só 3% mencionaram a importância social da PM como um dos motivos de seu ingresso na carreira). Apesar do termo genérico contido nas questões (sociedade), as respostas obtidas evidenciaram a inequívoca percepção do fato de serem vistos de forma negativa como profissionais.
É curioso que haja, entre os próprios PMs, um conceito negativo sobre seus companheiros policiais. Solicitados a relacionarem "características de caráter de personalidade que todo PM deveria ter", listaram educação/cultura, honestidade/idoneidade, equilíbrio emocional, amizade/respeito e conhecimento do serviço. À pergunta "os PMs que você conhece têm tais características?", 42% responderam nenhum ou poucos.
3) SOBRE A AVALIAÇÃO DO TRABALHO POLICIAL PELA POPULAÇÃO
Apenas 25% dos participantes revelaram achar que a população vê o trabalho do policial como sendo bem feito. Grande parte dos policiais da amostra, portanto, além de perceber a visão negativa da sociedade a respeito de sua atividade, ainda percebe adicionalmente que seu trabalho é visto como mal feito, ineficiente.
Esta sensação de inutilidade, de ineficiência no trabalho é creditada à Justiça que atrapalha, liberando os detidos com rapidez (79%), e à inexistência de penalidades severas, como a pena de morte (68%).
4) SOBRE O TRATAMENTO DIFERENCIADO
Grande parte dos participantes (71%) revelou ser tratada de maneira especialmente respeitosa por parte de pessoas da comunidade em geral, apenas pelo fato de serem policiais. A visão negativa a respeito do profissional policial convive com um relacionamento respeitoso no trato direto de muitos cidadãos com o policial. Portanto, à experiência de pertencer a uma instituição sobre a qual se reconhece que é vista de forma negativa, contrapõe-se uma experiência pessoal satisfatória de merecer respeito, de atuar como autoridade.
Quando perguntados se têm algum plano ou desejo de vir a executar outra atividade profissional, 52% disseram que sim, mas apenas 9% afirmaram que, para isso, deixariam a PM, o que corrobora a afirmação feita acima.
5) SOBRE AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA MELHORAR O POLICIAMENTO
Parte pouco expressiva dos participantes, 16%, julgou que as condições existentes são suficientes, na medida em que não apresentou qualquer sugestão. As principais sugestões apresentadas pelos participantes restantes foram, em ordem de importância: aumentar o efetivo (39%); aumentar e melhorar os recursos materiais (26%) e melhorar o treinamento dos policiais (7%). Outras sugestões consistiram em "redução da carga horária de trabalho" e "melhor relacionamento superior-subordinado". Ressalta o fato de que todas as sugestões ignoram as questões ligadas às contradições que comporta o relacionamento polícia-sociedade e omitem qualquer referência à existência simultânea de dois efetivos policiais (civil e militar) cujas funções se superpõem.
CONCLUSÕES POSSÍVEIS
É evidente que as respostas obtidas da limitada amostra não permitem conclusões indiscutíveis ou plenamente generalizáveis. Ressaltamos, ainda assim, alguns pontos que entendemos terem sua discussão forçada pelos resultados obtidos.
Houve percepção, pelos policiais militares da amostra, da visão negativa que a população tem de sua atividade profissional. Existem alguns fatores que colaboram para reduzir, junto ao policial militar, possíveis efeitos dessa percepção negativa. É plausível pensar que cada indivíduo policial está social e culturalmente envolvido com grupos de familiares e de amigos que conferem especial prestígio à atividade policial.
Outro refere-se ao fato de que algumas informações coletadas no trabalho revelaram o predomínio, entre os policiais da amostra, de uma visão não-questionadora da sociedade e, por extensão, de uma concepção ingênua da relação sociedade-polícia. Embora predomine tal visão, alguns participantes percebem determinadas situações que parecem, para quem observa de fora, implicar em contradições e paradoxos dificilmente acomodáveis em uma visão não-questionadora da sociedade.
A percepção das dificuldades e incongruências decorrentes do tipo de inserção da atividade policial na sociedade brasileira não garante sua compreensão, nem a compreensão de suas múltiplas determinações. As sugestões de melhoria, por exemplo, concentraram-se exclusivamente no âmbito da própria atividade policial (aumento dos quadros policiais, melhores equipamentos, melhor treinamento e seleção). Mais uma vez subjaz uma noção não-questionadora da sociedade: o problema está apenas no tamanho reduzido da organização policial e em características dos indivíduos policiais.
É evidente que esta visão não-questionadora não é exclusiva dos policiais (Benevides, 1983; Velho, 1991; Menandro, 1992), mas está disseminada entre a população que cada vez mais vê a violência em seu sentido criminal. É visível que a discrepância entre as concepções sobre violência e repressão das camadas populares e dos estudiosos guarda analogia com a discrepância dos caminhos apontados por uns (mais autonomia para agir, julgar e punir) e por outros (garantia dos direitos individuais como único antídoto contra injustiças maiores que, de outro modo, sobreviriam).
O presente trabalho aponta um caminho inevitável: conhecer mais e mais as concepções e representações de representantes de vários segmentos sociais, profissionais, etários etc. sobre justiça e temas correlatos (como quer Souza, 1992) dentro de um procedimento que permita a contínua revisão de nossas noções de in e out-groups (como sugere Velho, 1991).
Este parece ser o caminho para a esperança de que venhamos a entender porque há um consenso vulgarizado de que a violência é mecanismo legítimo de intermediação das relações sociais e de que a política repressiva deve ser reforçada em nome da ordem social; porque a luz dos direitos humanos chega tênue e difusa, sendo percebida de forma distorcida, quando não com pilhéria; porque justiceiros são temidos e aplaudidos e os linchamentos se sucedem entre horror e entusiasmo; porque a questão do menor desassistido só aparece sob a ótica da delinqüência; porque as práticas policiais arbitrárias e violentas têm tanta longevidade; porque as prisões estão abarrotadas de pequenos infratores e "office-boys" da criminalidade, que muitas vezes decidem ali uma carreira criminosa em tempo integral; porque algumas estrelas da contravenção, assim como alguns políticos delinqüentes, despertam simpatia em seu dúbio papel de protetores e corruptores, de assassinos e empregadores, de mestres da usurpação dissimulada mesclada com o mecenato popular.
Fonte: Psicologia USP
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