segunda-feira, 26 de maio de 2014

CONTRA O "RITO DE PASSAGEM".


Parte dos debatedores da formação policial entendem que aqueles que ingressam em uma instituição policial devem passar por um “rito” que seja capaz de transformá-lo em suas peculiaridades comportamentais. A ideia geral é fazer com que um novo sujeito surja, com hábitos, afeições e relações interpessoais distintas da vida pré-policial.

Ou melhor, trata-se de negar o que caracteriza o sujeito, conduzindo-o por uma pedagogia de formalização dos seus comportamentos, reduzindo suas possibilidades de escolha e autonomia. Semelhante ao adestramento militar tradicional, voltado para a guerra, a ideia é que o adestrado saiba responder apenas a “sim” ou “não”. Ou melhor: “sim senhor”ou “não senhor”.

Ora, para enquadrar sujeitos complexos e com personalidades multifacetadas num tal sistema é necessário eliminar essas mesmas complexidades. Na guerra é assim: ao comando de “atirar” não há meio termo. O inimigo geralmente não é sujeito de direito, logo (sob a lógica bélica), deve ser eliminado. Questionar, refletir, dialogar e negociar nesse contexto é inconcebível.

Não é o caso dos policiais, que exercem atividade muito diversa da proposta para as Forças Armadas. É ferramenta essencial ao trabalho policial a capacidade de discernimento crítico-analítico dos contextos onde atuará. Ao desenvolver práticas de garantia de direitos, deve usar sua subjetividade para convencer, negociar e dialogar. Lidando com diferentes pessoas em diferentes extratos sociais, deve ter aguçado seu potencial de sociabilidade, atuando como liderança comunitária.

Ao mutilar o ser humano policial dessas características, impondo-lhe um rito de passagem exclusivamente formalizador de seu comportamento, a instituição policial coloca em risco tanto o policial quanto a comunidade. O primeiro é enganado quanto à natureza de sua função, muito mais dinâmica que o instrumental “sim ou não”, e a segunda corre o risco de sofrer por falta de moderação de quem deveria se propor a se relacionar bem com ela.

A discussão sobre a viabilidade desse modelo de formação está em curso, e as próprias escolas de formação policial já têm abrandado, de certo modo, a perigosa rigidez dos “ritos de passagem”. Não é para menos: a cada dia que passa mais e mais policiais intelectualizados e despojados de certas paixões ideológicas ingressam nas polícias, sem falar nos efeitos que esse modelo gera às questões trabalhistas (inclusive remuneratório). A quem interessa policiais “enquadrados”, fechados e antissociais?

Fonte:  Abordagem Policial

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