O INIMIGO VESTE FARDA?
Faz pouco mais de um ano que o Brasil se tornou cenário de constantes manifestações nas ruas, muitas delas marcadas por confrontos entre a população e a Polícia Militar. O movimento, que começou em junho de 2013 com protestos contra o aumento do preço da passagem de ônibus em São Paulo, expôs a insatisfação generalizada da sociedade com a gestão dos recursos públicos, a corrupção e a qualidade dos serviços básicos, como saúde e educação. A maneira como policiais militares de diversos estados reagiram para conter as multidões acrescentou mais uma causa polêmica aos protestos: a desmilitarização da polícia que tem missão de garantir a ordem pública.
A divulgação das imagens da truculência policial reavivou essa idéia, que já havia sido discutida e rejeitada na Assembleia Nacional Constituinte de 1987. Atualmente, três propostas de emenda à Constituição (PECs) sobre o tema estão em andamento no Congresso Nacional. A principal delas começou a tramitar três meses após o início das manifestações que trouxeram à tona a violência policial.
Os defensores da mudança, como o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003), argumentam que o treinamento militar faz com que o policial enxergue qualquer manifestante ou suspeito na rua como inimigo da sociedade. Movido pelo mantra hierarquia, acrescentam, o PM torna-se um mero cumpridor de ordens superiores em vez de servir e proteger a população. Essa visão , segundo os críticos do atual modelo, está por trás do elevado número de registros de violência envolvendo policiais militares no Brasil. A saída, apontam, está na unificação com a polícia civil e na reformulação de seus conceitos. Assim, eventuais abusos seriam julgados pela Justiça comum, e não mais pela corte militar.
A proposta de desmilitarizar a polícia enfrenta resistência de parte da corporação, que enxerga na mudança o enfraquecimento do chamado policiamento ostensivo. O argumento é que, apesar da formação militar, a PM tem função civil, não trata o cidadão como inimigo e incute em seus quadros, mais do que qualquer outra instituição, os valores éticos e morais de respeito e ordem. Eventuais excessos não são abafados pelo corporativismo, mas punidos com rigor pela Justiça Militar, sustentam.
Pesquisa divulgada no final de julho, realizada com mais de 21 mil policiais civis, militares, federal e rodoviários e com bombeiros, mostrou que 73,8% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, com a desmilitarização das PMs e dos Corpos de Bombeiros. Entre os policiais militares, esse índice sobe para 77%. O estudo , conduzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da FGV e pelo Ministério da Justiça, também indica que 99% dos policiais consideram seus salários baixos. Em alguns estados, como Piauí e Rio Grande do Sul, a remuneração de um policial militar em início de carreira não chega aos R$ 2 mil.
Há dois anos, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, no Exame Periódico Universal, enviou ao governo brasileiro um relatório com 170 propostas, entre elas a desmilitarização da PM. O Ministério das Relações Exteriores recusou a sugestão. Alegou se inconstitucional e ressaltou o papel fundamental da PM como mantenedora da ordem pública. Foi a única integralmente recusada.
Mexer nessa estrutura significa alterar a realidade de 428,3 mil policiais militares e 116 mil civis, segundo os números consolidados mais recentemente pelo Ministério da Justiça, em 2011. Uma mudança que teria suas conseqüências para os quase 200 milhões de cidadãos brasileiros. Para melhor ou para pior? Aí as opiniões se dividem.
NOVO CAMINHO
Apresentada em setembro do ano passado, no rastro dos confrontos protagonizados entre manifestantes e policiais, a PEC 51/2013, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) , é a principal aposta dos defensores da desmilitarização. Candidato a governador do Rio de Janeiro, Lindbergh avalia que a violência policial não decorre propriamente do treinamento militar “Quando mal conduzido, pode favorecer a intensificação da violência, mas não é essa a questão. Se fosse assim a Polícia Civil não seria violenta”, observa. Então, por que desmilitarizar? “Desmilitarizar significa viabilizar uma organização policial mais descentralizada, capaz de se adaptar às especificidades locais”, responde.
A proposta unifica em uma só carreira todos órgãos policiais. Ou seja, haveria apenas uma forma de ingressar na polícia estadual e um só plano de cargos e salários. Caberia a cada estado e ao Distrito Federal definir o modelo que melhor atendesse às suas peculiaridades. Além disso, o texto prevê a criação de uma ouvidoria externa. Lindbergh Farias afirma que essas mudanças são “indispensáveis” para as instituições de segurança pública cumprirem seu papel em benefício de todos os cidadãos, sem distinção de classe, cor , idade, gênero ou local de residência.
O senador diz ainda que o objetivo da proposta é valorizar os policiais e permitir a modernização da estrutura organizacional para que eles encontrem condições plenas para atuar e se aperfeiçoar. “A PEC não tem a intenção de ampliar ou de criar gastos além dos que já existem para a segurança. As mudanças devem ocorrer à medida que haja recursos disponíveis, e seu tempo de execução depende de debate com a sociedade”, explica. Em 2012, mais de R$ 61 bilhões foram investidos na segurança pública― menos de 2% do Produto Interno Bruto (PIB).
A PEC 51/13 foi redigida com a colaboração de Luiz Eduardo Soares, autor dos livros Elite da Tropa e Elite da Tropa 2, que inspiraram dois dos maiores sucessos do cinema nacional. “Finalidades distintas exigem estruturas organizacionais diversas. Portanto, só seria racional reproduzir na polícia o formato do Exército se as finalidades das instituições fossem as mesmas”, afirma. Ele propõe reformar não apenas as PMs , desmilitarizando-as, mas o próprio modelo policial.
Texto escrito por Paula Oliveira
Fonte: Revista Congresso em Foco.
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