“A capacidade da polícia atuar em determinada comunidade sendo apoiada pela população, usando o mínimo de força possível”
A qualidade da relação entre a polícia e a comunidade costuma gerar discussões típicas de torcida de futebol em final de campeonato.
Basta uma matéria de manchete impactante ser publicada sobre desentendimentos na relação entre um policial e um membro da comunidade (preferencialmente recheada por um vídeo de embate físico) que logo surgem as disputas por definir quem está certo e quem está errado.
Embora tenha importância que a ação da polícia seja debatida publicamente, é ainda mais importante aprofundar o olhar sobre os elementos que levam a polícia a garantir uma atuação que, por um lado, tenha menos necessidade de uso da força, e, por outro, que tenha menos questionamentos e resistência por parte da comunidade.
Chamo de legitimidade policial a capacidade da polícia atuar em determinada comunidade sendo apoiada pela população, usando o mínimo de força possível para previnir violências e delitos em sua área de atuação.
Quanto mais legitimidade tem um grupamento policial, menos os próprios policiais e os demais cidadãos são expostos a riscos, e mais as relações sociais fluem sem intervenção da força. Neste artigo pretendo discutir alguns fatores essenciais para a construção de legitimidade policial.
Legalidade não é Legitimidade
Muitos policiais confundem legalidade com legitimidade. Embora seja o primeiro passo para o desenvolvimento de sua ação, a legalidade não é suficiente para que um policial tenha legitimidade.
Talvez um Juiz possa atuar sem muitos embaraços se apenas for legalista. O policial precisa de algo mais.
Uma simples ordem dada por um policial, mesmo sendo perfeitamente legal, pode se tornar ilegítima por causa da forma como se dá a ordem. Se usa arrogância ou desprezo, por exemplo, a ordem passa a ser questionada não pela sua legalidade, mas por sua legitimidade.
Talvez um Juiz possa atuar sem muitos embaraços se apenas for legalista. O policial precisa de algo mais.
Honestidade e sinceridade
Não é possível garantir que a ação da polícia seja respeitada quando sabe-se que, na condição de cidadão, o policial não cumpre seu dever. Da mesma forma, o policial não pode voltar atrás de sua ação legal, qualquer que seja a razão.
A comunidade deve enxergar no policial uma figura que, além de cumprir seus deveres, não permitirá que direitos sejam desrespeitados por quem quer que seja. Por isso, mesmo o mais destacado membro da comunidade – lideranças comunitárias incluídas – devem saber, com sinceridade, que os valores da integridade social estão acima de qualquer relação individual.
Para alcançar legitimidade não é preciso ser leniente. Ao contrário.
Capacidade de ouvir
Toda organização bem-sucedida deve ser sensível às impressões e opiniões que o público tem dos serviços prestados.
Parece óbvio e redundante, mas nem sempre é colocado em prática pelas unidades policiais o acolhimento do feedback visando fortalecer o que há de bom, extinguir o que há de ruim e aperfeiçoar o que há de defeituoso.
Saber a opinião da comunidade também faz com que ela se sinta parte das políticas desenvolvidas pelos policiais, evitando oposição à atuação.
Respeito à cultura e hábitos
É comum (por ser mais fácil e cômodo) que a atuação policial em uma comunidade tenha a natureza de um “choque de ordem”, assumindo o tom meramente proibitivo, desconsiderando os hábitos da população e sua cultura.
Dizer “não” a tudo certamente evita que delitos ocorram, mas também evita que a vida social das pessoas se realize.
Dizer “não” a tudo certamente evita que delitos ocorram, mas também evita que a vida social das pessoas se realize. O desafio é garantir que a sociabilidade da comunidade se mantenha prevenindo a incidência de violências.
Cada comunidade tem uma dinâmica de horários, de formas de divertimento e interação. Ao considerar tudo isso, a polícia se integra ao contexto social e é mais reconhecida pela comunidade.
Capacidade de mediação e prevenção
Em toda relação humana ocorrem desacordos, disputas e desentendimentos. A incapacidade de lidar com essas questões, em último grau, pode levar à violência.
Considerando o papel preventivo que deve ter a atividade policial, mediar adequadamente os conflitos que nascem em uma comunidade é algo central. Essas pequenas mediações são a principal tarefa que a maioria dos policiais já fazem nas ruas, o que acentua a necessidade de preparo e aprofundamento nas técnicas de mediação.
Quanto mais mediações bem-sucedidas o policial faz, menos precisa usar a força, eliminando os riscos para todas as partes (policiais incluídos).
Efetividade na ação
Entre todos os aspectos mencionados neste artigo este certamente é o que menos depende do policial, individualmente, já que se refere ao desdobramento que é dado à ação policial legal.
Por defeitos estruturais nos modelos das polícias brasileiras, com o ciclo dividido entre as polícias civis e as polícias militares, é difícil ter a garantia de que as ações policiais terão alguma efetividade.
Com o atual sistema, o policial militar é desencorajado de autuar em uma simples perturbação do sossego, pois evita o ônus logístico (distância, demora) e interpessoal (rivalidade, corporativismo) de encaminhar o caso à delegacia de Polícia Civil.
Além disso, o policial precisa lidar com a desastrada política de drogas praticada no país, apreendendo quantidades cada vez maiores de drogas ilícitas e testemunhando o quão inócuo é seu esforço para resolver um problema da área de saúde com ferramentas da área de segurança.
Nesse cenário desgastante, a atuação policial acaba sendo seletiva, transmitindo a sensação (aos policiais e à comunidade) de falta de efetividade e utilidade no trabalho da polícia.
Concluindo…
Como se vê, não é simples conquistar legitimidade para um grupamento policial em uma comunidade.
Os fatores citados neste artigo sequer são os únicos que compõem esse precioso troféu, mas provavelmente estão entre os principais para fazer com que a ação da polícia seja bem aceita e que use o mínimo de força possível.
Quanto mais legitimidade, menos resistência, menos força, menos risco, mais segurança e mais paz pública.
Fonte: Abordagem Policial (Danillo Ferreira)
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