1. Considerações iniciais
As organizações militares se estruturam através de dois princípios básicos: o princípio da hierarquia militar e o princípio da disciplina militar. Esses princípios visam combater a indisciplina militar e, por isso, nos regulamentos disciplinares militares são previstas, inclusive, medidas extremas, como as medidas privativas de liberdade, aplicadas ao militar.
O princípio da hierarquia é bastante conhecido no âmbito da Administração Pública. Di Pietro (2010, p. 70) explica que “Em consonância com o princípio da hierarquia, os órgãos da Administração Pública são estruturados de tal forma que se cria uma relação de coordenação e subordinação entre uns e outros, cada qual com atribuições definidas na lei. Desse principio, que só existe relativamente às funções administrativas, não em relação às legislativas e judiciais, decorre uma série de prerrogativas para a Administração: a de rever os atos dos subordinados, a de delegar e avocar atribuições, a de punir; para o subordinado surge o dever de obediência”.
Observe que do princípio da hierarquia surge o dever de obediência ao subordinado; obediência não apenas ao superior hierárquico, mas também a todo complexo de normas jurídicas que regem a Administração Pública. Ou seja, o dever de obediência (disciplina) é uma das decorrências do Poder Hierárquico.
No meio militar, Hierarquia é a ordenação da autoridade , em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas e Forças Auxiliares (Decreto n. 88.777, de 30-09-1983, art. 2º, n. 15). Já “A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar” (RDE, art. 8°, g. n.). A disciplina se exterioriza pelas seguintes formas: a correção de atitudes, a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos; a dedicação integral ao serviço; e a colaboração espontânea para a disciplina coletiva (RDE, art. 8°, § 1°).
Assim, ao menos em teoria, não existem grandes diferenças entre a hierarquia e a disciplina militar daquelas existentes no meio civil. Todas são normas de cumprimento obrigatório que regulam o serviço público. Noutro giro, se sabe que o respeito à hierarquia e à disciplina é mais acentuada no meio militar do que aquela existente no mundo civil.
O militar está sujeito a regras mais rígidas, como o código penal militar e o regulamento disciplinar de cada força ou organização militar. Não existem diferenças estruturais consideráveis entre o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) e os regulamentos disciplinares das policiais militares (PPMM) do Brasil. Não é ao acaso, portanto, que diversas policiais militares do Brasil adotam como regulamento disciplinar o RDE.
O Decreto-Lei 667/69 prevê que as polícias militares serão regidas por regulamento disciplinar redigido à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação (art. 18).
Na Polícia Militar do Paraná (PMPR), por exemplo, aplica-se o RDE, por força do artigo 482 do Regulamento Interno dos Serviços Gerais da PMPR – RISG/PMPR, aprovado pelo Decreto Estadual nº 7.339, de 08-06-2010 e também pelo contido no artigo 1º, § 5º da Lei Estadual 1.943/54 – Código da PMPR. Outras polícias militares adotam legislação própria, mas vinculas aos parâmetros estabelecidos no Decreto-Lei 667/69.
Embora a Constituição Federal em vigor seja de 1998, ainda hoje se discute a compatibilidade do RDE com a Carta Maga, principalmente como o contido no art. 5°, inciso LXI que estabelece que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (g. n.). O Objetivo desse artigo é diagnosticar o atual entendimento jurisprudencial sobre a controvérsia.
2. (In) constitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército
Com a inauguração na ordem constitucional de 1988, a constitucionalidade dos regulamentos disciplinares militares introduzidos no ordenamento jurídico, através de decretos do Chefe do Poder Executivo começou a ser debatido no âmbito das Cortes brasileiras.
O grande debate passou a ser sobre a interpretação do artigo, inciso LXI que estabelece que: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (g. n.).
O questionamento sobre o dispositivo constitucional passou a ser o seguinte: apenas os crimes militares devem ser definidos em lei ou os crimes militares e as transgressões militares devem ser estabelecidos em lei?
O caso chegou a ser discutido na Suprema Corte por envolver matéria constitucional. O Senhor Ministro Marco Aurélio chegou à conclusão que a expressão “definidos em lei” só se refere a crimes militares, votando pela improcedência do pedido.
Já o voto vencedor (divergência iniciada pelo Senhor Ministro Gilmar Mendes) foi no sentido do não conhecimento da Ação, porque, no caso se entendeu que o requerente não demonstrou, no mérito, cada um dos casos de violação contida no Decreto que institui o Regulamento Disciplinar do Exército. O acórdão ficou assim ementado:
EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto no 4.346/2002 e seu Anexo I, que estabelecem o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro e versam sobre as transgressões disciplinares. 2. Alegada violação ao art. 5°, LXI, da Constituição Federal. 3. Voto vencido (Rel. Min. Marco Aurélio): a expressão ("definidos em lei") contida no art. 5°, LXI, refere-se propriamente a crimes militares. 4. A Lei no 6.880/1980 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, no seu art. 47, delegou ao Chefe do Poder Executivo a competência para regulamentar transgressões militares. Lei recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Improcedência da presente ação. 5. Voto vencedor (divergência iniciada pelo Min. Gilmar Mendes): cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um
dos casos de violação. Incabível a análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial. 8. Não conhecimento da ADI na forma do artigo 3º da Lei no 9.868/1999. 9. Ação Direta de Inconstitucionalidade não-conhecida. (ADI 3340, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2005, DJ 09-03-2007).
Nas unidades federativas alguns entes também inseriram decretos do Chefe do Poder Executivo estabelecendo punições disciplinares. Por exemplo, no Rio Grande do Sul foi editado o Decreto 43.245/2004. A constitucionalidade de tal Decreto chegou a ser discutido na Suprema Corte, porque o recorrente defendeu a tese de que a punição de restrição de liberdade fundada em decreto ofende a Constituição Federal.
No Recurso Extraordinário n. 610.218 entendeu a Corte Suprema pela inexistência da repercussão geral da questão constitucional ventilada, porque a ofensa a dispositivo constitucional seria indireta ao ensejar o exame da legislação infraconstitucional. Confira a ementa da decisão:
Militar. Regulamento disciplinar da polícia militar do Estado do Rio Grande do Sul. Decreto estadual 43.245/04. Punição disciplinar restritiva de liberdade. Aplicação dos efeitos da ausência de repercussão geral tendo em vista tratar-se de divergência solucionável pela aplicação da legislação estadual. Inexistência de repercussão geral. (RE 610218, Relator: Min. Ellen Gracie, julgado em 29/04/2010, DJe-100).
Observe que até então ainda não foi discutido o mérito da controvérsia na Suprema Corte. Entretanto o caso voltou a ser debatido e, ao que parece, agora vai ser enfrentado o mérito do caso, porque foi reconhecida a repercussão geral do caso.
Confira-se:
Ementa constitucional. Estatuto dos militares das Forças Armadas. Contravenções e transgressões disciplinares. Acórdão que declarou não recepcionado o artigo 47 da lei n. 6.880/80 pelo ordenamento constitucional vigente à luz do art. 5º, inciso LXI, da CF. Tema eminentemente constitucional e que não se confunde com a ausência de repercussão geral fixada no re n. 610.218/RS (tema 270). Repercussão geral reconhecida. (RE 603116, Relator(a): Min. Dias Toffoli, julgado em
06/03/2014, acórdão eletrônico DJE-053.)
Esse Recurso Extraordinário foi interposto pela União, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, contra acórdão da oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que chegou a conclusão num julgamento de Habeas Corpus que as sanções de detenção e prisão disciplinares, por restringirem o direito de locomoção do militar, somente podem ser validamente definidas através de lei stricto sensu (CF, art. 5º, LXI).
O acórdão recorrido entendeu que o art. 47 da Lei nº 6.880/80 restou revogado pelo novo ordenamento constitucional, pois que incompatível com o disposto no art. 5º, LXI.
3. Considerações finais
Há tempos a punição dos militares do Exército vem sendo estipulado em Decretos expedidos pelo Presidente da República. Diversas polícias militares do Brasil seguem a mesma sistemática: ou por adotar regulamentos disciplinares semelhantes ou por adotar o próprio regulamento disciplinar do Exército, estipulado pelo Decreto n. 4.346, de 26 de agosto de 2002, que aprovou o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e deu outras providências.
Tal Decreto foi editado com fundamento no art. 84, inciso IV, da Constituição bem como o art. 47 da Lei no 6.880, de 9 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares) e, em que pese o referido Decreto n. 4.346/2002 ser de data posterior a Constituição Federal de 1988, ele ainda continua ser questionado judicialmente por ter ele, assim como o antigo Decreto n. 90.608, de 4 de dezembro de 1984, punições privativas de liberdade, fundada em Decreto e não em lei, em stricto sensu.
Na verdade o Direito militar necessita de meios eficientes para combater a indisciplina militar, adotando, por vezes, inclusive medidas privativas de liberdade, como a detenção e a prisão disciplinar. Observe que a essência da discussão não é quanto à necessidade de tais medidas no meio militar e sim a forma que tais punições disciplinares foram inseridas no mundo jurídico.
É importante que o Supremo Tribunal Federal analise o mérito da questão constitucional controvertida (RE 603116 – RS), afim de que, se for o caso, os regulamentos disciplinares se adaptem a nova ordem constitucional, acabando com o cenário de insegurança jurídica, que se instaurou desde 1988 e ainda hoje não se tem uma decisão definitiva sobre o caso.
De qualquer forma, seria prudente que as organizações militares que adotam regulamentos disciplinares, inseridas no ordenamento jurídico, através de decretos do Chefe do Poder Executivo se precavessem e buscassem a aprovação de lei em stricto sensu, na definição de transgressões disciplinares e nas suas respectivas punições.
Mesmo porque não há muitas controvérsias sobre a constitucionalidade das punições privativas de liberdade no mundo militar, inclusive há respaldo constitucional nesse sentido, que prevê a prisão de militar nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar (CF-88, art. 5°, inciso LXI).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei n. 667, 02-07-1969, Diário Oficial da União de 03-07-1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0667.htm, acesso em 08-06-2015.
________. Decreto n. 88.777, de 30-09-1983, Aprova o Regulamento para as Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200). DOU de 04-10-1983. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D88777.htm, acesso em 08-06-2015.
________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 05-10-1988. Diário Oficial da União n. 191-A, de 05-10-1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 07-06-2015.
_________. Decreto n. 4.346, de 26-08-2002. Diário Oficial da União 27-08-2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4346.htm, acesso em 06-06-2015.
_________. STF. ADI 3340, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2005, DJ 09-03-2007. Disp. em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=47&dataPublicacaoDj=09/03/2007&incidente=2254219&codCapitulo=5&numMateria=6&codMateria=1, acesso em 08-06-2015.
_________. STF. RE 610218, Relatora: Min. Ellen Gracie, julgado em 29/04/2010, DJe-100. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?
Fonte: Jus Militaris (artigo escrito por Douglas Pereira da Silva)
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