Foro privilegiado tornou-se um refúgio contra punições. O editorial de ontem, 09, do Valor Econômico que vale um bom debate:
Há uma Justiça para poucos no país, inoperante e morosa na resolução das disputas comuns que afetam a vida dos cidadãos. Se a exasperante lentidão traz prejuízos à coletividade, no caso do foro especial por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, ela beneficia diretamente os envolvidos em malfeitos. Deputados, senadores, ministros, presidente e vice-presidente, governadores, prefeitos são parte desse universo, estimado em 22 mil pessoas, que têm direito a um julgamento qualificado pelas mais altas Cortes. Condenações são gloriosas exceções, em meio à regra das prescrições e de protelamentos das sentenças.
De 84 ações penais contra 54 deputados e senadores no Supremo Tribunal Federal, 26% (22) correm há mais de uma década e 44% (37) há mais de 6 anos (Folha de S. Paulo, 7 de novembro). A média é de quase 8 anos. A mais recente candidata à prescrição é a ação em que é réu o presidente do Senado, Renan Calheiros, acusado de ter as despesas de sua filha com uma jornalista bancada pela construtora Mendes Júnior. O caso é de 2007 e levou à renúncia de Renan da presidência do Senado na época. Agora mais uma vez no cargo, o senador coleciona outros 11 inquéritos no STF, oito deles resultantes da Lava-Jato.
O foro é preceito constitucional e visa, entre outras coisas, proteger quem faz as leis e quem é encarregado de zelar pelo seu cumprimento de pressões políticas e perseguições movidas por governos. Durante a ditadura militar, o Ato institucional 5 varreu as imunidades parlamentares de cena e frequentemente a corrupção serviu de pretexto, sem chances de contraditório, para tirar oposicionistas de cena. São os tribunais superiores, em tese menos suscetíveis a pressões e mais independentes, os encarregadas de julgar os detentores do foro. Embora possa se discutir sua abrangência, tem bons argumentos a seu favor.
Mas as fraquezas e deficiências do Judiciário tornaram-se mais gritantes quando a Operação Lava-Jato descobriu digitais de mais de 40 deputados e senadores, ou ex-ocupantes dos cargos, no imenso propinoduto da Petrobras. O número de políticos envolvidos pode passar muito da centena, acredita quem teve acesso ao que se negocia na delação premiada de Marcelo Odebrecht. Além disso, um levantamento do site Congresso em foco indicou que 180 congressistas são alvos de algum tipo de investigação, o equivalente a 30% da Câmara dos Deputados.
O foro privilegiado virou sinônimo de impunidade, o que tornou-se particularmente insuportável diante das investigações que desvelaram o maior escândalo de corrupção da história recente. Há muitos exemplos que mostram como opera a Justiça nesses casos. O senador Jader Barbalho conseguiu, ao completar 70 anos, se livrar de 8 acusações criminais, porque ao atingir essa idade caiu à metade o tempo de prescrição dos delitos pelos quais foi acusado. Agora tem novo inquérito a lhe perseguir, fruto das investigações da Lava-Jato (Congresso em Foco, 20-12-2015).
Os processos se avolumam e o STF não tem dado conta do recado, no atacado. A Procuradoria Geral da República identifica uma carência estrutural do Supremo - ele não foi criado para instruir processos e sim para julgar recursos de processos que já chegam completos às suas mãos. O foro privilegiado "é feito para não funcionar", diz Luís Roberto Barroso, ministro do STF, que o considera um "resquício aristocrático". De qualquer forma, é atribuição do tribunal julgar os casos e isso não está acontecendo, enquanto o tempo enxota as ações para a prescrição.
É duvidoso que extinguir o foro resulte em maior celeridade. Isso é verdade no caso da Lava-Jato e do juiz Sergio Moro, mas está longe de ser a regra geral. Pelas facilidades de inúmeros recursos, a primeira instância em geral é só o ponto de passagem para os milhares de ações que infernizam o STF hoje. Chegar à cadeia final leva anos por esse caminho. Um STF desafogado poderia se desincumbir da tarefa com mais rapidez, mas isso dificilmente ocorrerá a médio prazo. Restringir o número de pessoas que têm direito ao foro pode ajudar.
De qualquer forma, a Justiça está sozinha nessa tarefa. Não pode contar com as comissões de ética do Legislativo, sempre dispostas a agir com espírito corporativo. O caso de Eduardo Cunha foi exemplar nesse sentido. Não chega a 30 o número de parlamentares que foram cassados por seus pares desde a redemocratização do país, há 30 anos.
Fonte: Blog do jornalista Cláudio Nunes
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