Informações têm chegado ao blog Espaço Militar de que alguns policiais militares do Estado de Sergipe estão tendo suas férias indeferidas por parte do comando da corporação, por terem excedido 90 dias de afastamento.
Segundo o advogado Márlio Damasceno, em agindo assim, o comando da PMSE está indo em desacordo com decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe em 29 de novembro de 2016 e publicada no diário oficial em 1º de dezembro de 2016, que no processo nº 201400808559, afastou a eficácia da norma contida no artigo 108, II, da Lei 2.148/77 (Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de Sergipe), visto que tal norma não fora recepcionada pela Constituição de 1988, garantindo ao servidor público estadual o direito das férias, mesmo que este tenha excedido 90 dias de afastamento.
Confiram abaixo a parte final da decisão exarada pelo TJSE:
...
Inconformado, a parte Autora interpôs Recurso de Apelação, e em suas razões recursais, alega preliminar de nulidade de sentença por ausência de fundamentação. No mérito pretende a o deferimento do gozo de férias relativo ao período aquisitivo de 27/05/2010 a 27/05/2011. Destaca que o afastamento de suas funções no período de 2010 a 2011, para gozo de licença para tratamento de saúde, não pode obstar o direito do servidor ao gozo de férias, sob pena de afronta aos preceitos constitucionais.
Inicialmente, cabe explicitar a não aplicação do novo Código de Processo Civil ao presente feito.
A legislação processual tem aplicação imediata no tempo, respeitados os atos praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada. Isto é o que dispõe o artigo 14, do Novo Código de Processo Civil, in verbis:
“Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.”
O dispositivo legal acima transcrito é bem claro ao determinar que a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso. Todavia, o Novo Código de Processo Civil, na segunda parte da redação do artigo 14/NCPC, cuidou de resguardar os atos processuais já praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.
Isso porque, o ato processual praticado é também um ato jurídico perfeitamente realizado no tempo e merece proteção ao direito que foi conferido, nos termos do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, desse modo, o novo diploma adjetivo civil não pode atingir um ato jurídico perfeitamente praticado sob a égide da legislação anterior, devendo o presente recurso analisar se a legislação processual então vigente foi respeitada.
Neste sentido, destaco o Enunciado Administrativo de numero 02, redigido pela Corte Superior:
Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Dito isso, passo à análise da preliminar suscitada.
Com relação ao argumento do impetrante acerca da ausência de fundamentação pelo Juízo a quo, alegando a violação ao artigo 93, IX, da Constituição Federal, motivo pelo qual pleiteia a nulidade da sentença. Entretanto, observo que tal pretensão recursal não merece prosperar.
A sentença primeva decidiu fundamentadamente acerca da matéria, não havendo que se falar em ausência de fundamentação da decisão atacada.
A Carta Magna de 1988 prescreve que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)” (art. 93, inciso IX).
No mesmo sentido, dispõe o art. 165 do Código de Processo Civil/73: “As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso”.
Assim sendo, in casu, não há que se falar em invalidade da decisão, considerando que não há vício a macular o ato decisório, pois, apesar de sucinta a fundamentação da questão controvertida, fora motivada pelo magistrado primevo, estando presentes os requisitos essenciais do julgado.
Dessa forma, não merece acolhida a tese de nulidade suscitada sob o argumento de que a decisão carece de fundamentação.
Passo à análise do mérito dos recursos e por possuírem o mesmo objeto, passo à análise conjunta dos apelos.
Cingem-se os recursos a discutir se o servidor que passou mais de noventa dias em licença para tratamento de saúde possui direito a gozo de férias em relação ao período afastado.
Pois bem.
Os art. 7º, inciso XVII, e 39, § 3º, da Constituição da República, estabelecem que:
Art. 7º
(...)
XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal.
(...)
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. § 3ºº Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art.7ºº, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.
Por sua vez, o Estatuto do Servidor Público do Estado de Sergipe (Lei nº 2.148/77), que foi utilizado como embasamento para a negativa de concessão de férias, em seu art. 108, dispõe que:
Art. 108 - Não terá direito a férias o funcionário que, durante o ano da sua aquisição:
[...]
II - Permanecer em gozo de licença para tratamento da própria saúde, por mais de 90 (noventa) dias;
[...]
Com efeito, voltando os olhos ao caso concreto, verifica-se que o apelado ficou afastado de suas atividades por motivo de doença entre 02/09/2010 e 18/05/2011 (oito meses e dezesseis dias), portanto, mais que o os 90 dias permitidos pela lei para que não ocorra a perda das férias.
Ocorre que a Lei Estadual é anterior ao texto da Constituição da República em vigor que, no âmbito do art. 7º, estabelece ser direito social dos trabalhadores extensíveis aos servidores públicos em face do art. 39, § 3º, o "gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal."
Neste sentido, é razoável entender que o art. 108, inciso II, da Lei Estadual nº 2.148/77, que restringe o direito ao gozo de férias sem que o servidor tenha praticado qualquer infração funcional não foi recepcionado pela nova ordem constitucional.
A recepção constitucional ocorre quando se é editada uma nova Constituição e as normas infraconstitucionais que existem passar por uma análise de adequação com o texto constitucional recém editado, desta forma segundo Dirley da Cunha “Essa recepção fará com que as normas compatíveis com a nova ordem constitucional sejam incorporadas ao novo parâmetro constitucional”, e aquelas que não, sejam extirpadas.
Assim, quando a lei não é recepcionada, ela sofre o mesmo efeito da revogação, deixando de existir no Ordenamento Jurídico. A lei perde sua imperatividade, deixando de ser obrigatória sua observância.
É o que aconteceu nos presentes autos. O art. 108, II, do Estatuto do Servidor Público do Estado de Sergipe, deixou de existir assim que a Constituição de 88 fora promulgada.
Em outras palavras vale dizer, ao estabelecer a perda das férias e do terço constitucional em razão de licença, violou norma Constitucional de aplicação imediata e sem outras restrições, e por isso não fora recepcionada pela nova ordem constitucional.
Assim, entendo ser direito líquido e certo do servidor público a obtenção de férias e do terço constitucional por expressa garantia da Constituição da República.
Vejamos a jurisprudência nacional:
DIREITO ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE BETIM - DIREITO AO RECEBIMENTO E GOZO DE FÉRIAS - SERVIDOR QUE UTILIZOU DA PRERROGATIVA DA LICENÇA SAÚDE - RESTRIÇÃO AO DIREITO CONSTITUCIONAL - IMPOSSIBILIDADE - INAPLICABILIDADE DA LEI MUNICIPAL N. 884/69 - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - MAJORAR - REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA.
1 - A Constituição Federal assegura aos trabalhadores, no título dos direitos e garantias fundamentais e no capítulo dos direitos sociais, notadamente a saúde e o lazer, com objetivo de melhoria da condição social, o gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal, não sendo a Lei Municipal nº 884/69 recepcionada pela Constituição Federal ao restringir esse direito ao servidor que utilizou da prerrogativa de licença saúde.
2 - O direito a férias não pode ser confundido como o de licença saúde, pois, enquanto o primeiro é um benefício decorrente da necessidade de descanso e de lazer do trabalhador; o segundo é uma prerrogativa concedida ao servidor que se encontra frágil e debilitado fisicamente ou emocionalmente.
3 - O arbitramento dos honorários advocatícios, nos termos do art. 20, do CPC, a critério da apreciação equitativa do juízo, deve levar em consideração o grau de zelo do advogado, o lugar da realização do serviço, a natureza e a importância da causa, o trabalho realizado e o tempo de duração do serviço. (Apelação Cível 1.0027.09.201841-8/001, Relator (a): desembargadora Sandra Fonseca , 6ª Câmara Cível, DJ 06/07/2012).
Por fim, cabe ressaltar que a licença para tratamento de saúde e as férias têm finalidades diversas. A primeira visa proporcionar ao servidor público a possibilidade de cuidar de sua integridade física e psíquica, garantindo-lhe capacidade de melhor desempenhar suas funções. A segunda tem como objetivo proporcionar-lhe descanso e recreação.
Ora, o requerente não estava, no período de licença médica, descansando; esteve afastado de sua função para tratar enfermidade que o acometia.
Logo, o afastamento para tratamento da saúde não pode excluir o direito ao gozo de férias, notadamente porque o art. 51, inciso VII, alínea b do Estatuto do Servidor Público do Estado de Sergipe prevê que o tempo de licença para tratar da própria saúde é considerado como de efetivo exercício para todos os efeitos legais.
Vejamos a jurisprudência nacional:
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. PROFESSOR. LICENÇA MÉDICA. FÉRIAS. CONVERSÃO EM PECÚNIA. LEI Nº. 8.112/90. JUROS APLICÁVEIS À FAZENDA PÚBLICA.
1. O tempo de licença para tratamento da saúde do próprio servidor (Artigo 102, inciso VIII, alínea b, Lei 8.112/90) deve ser contado como efetivo exercício, inclusive para o efeito de deferimento das férias concernentes ao período ou aos períodos em que o servidor esteve licenciado, as quais devem ser deferidas tão logo o servidor retorne ao serviço e assim requeira.
2. O Distrito Federal deve converter em pecúnia as férias não gozadas em virtude de a servidora encontrar-se de licença médica no período das férias coletivas dos professores, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração.
3. A nova redação do art. 1º-F da Lei 9.494/97 não se aplica às ações ajuizadas antes da sua vigência (30/06/09), pois a norma que disciplina juros de mora é de direito material. Precedentes do STJ.
4. Apelo provido. (Acórdão n.746927, 20080111293664APC, Relator: CRUZ MACEDO, Revisor: FERNANDO HABIBE, 4ª Turma Cível, Data de Julgamento: 04/12/2013, Publicado no DJE: 13/01/2014. Pág.: 115) (grifos meus)
Forte em todo o expendido, conheço dos presentes recursos para LHES DAR PROVIMENTO, reformando-se a sentença combatida para conceder a segurança pleiteada, afastando a eficácia da norma contida no art. 108, II, da Lei 2.148/77(Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de Sergipe), posto que não recepcionada pela Constituição de 1988, e, por conseguinte, garantir o direito de férias do impetrante relativo ao período aquisitivo de 27/05/2010 a 27/05/2011.
Custas pelo impetrado.
Sem honorários, nos termos da lei.
É como voto.
Aracaju/SE, 29 de Novembro de 2016.
DESEMBARGADOR ALBERTO ROMEU GOUVEIA LEITE
RELATOR
"Portanto, quem se sentir prejudicado, deve acionar a Justiça, através de mandado de segurança, para garantir o seu direito", pontuou Márlio Damasceno.
Matéria do blog Espaço Militar
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