O Tribunal Superior Eleitoral está julgando o Recurso Especial Eleitoral nº 8285, advindo de Luziânia-GO, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, o qual, em voto proferido em 25 de junho, propôs que: “a partir das Eleições de 2020, seja assentada a viabilidade do exame jurídico do abuso de poder de autoridade religiosa em sede de ações de investigação judicial eleitoral”.
Sem adentrar no mérito, mesmo porque trata-se de processo sub judice, impende-me discorrer, brevemente, acerca da novel e palpitante temática. Anteriormente a este processo, a referida Corte apenas reconhecera a ocorrência de abuso de poder econômico em situações assemelhadas, ou seja, quando líderes religiosos se utilizaram da estrutura de suas igrejas para promoverem candidatos que apoiavam.
A questão é controversa, já que apenas são legislados os abusos de poder econômico, político e midiático (art. 22, caput da LC 64/90), sujeitados à inelegibilidade por 8 anos além da cassação do registro ou diploma. Para alguns, portanto, a limitação não admitiria interpretação extensiva a ponto de incluir as autoridades religiosas, prevalecendo o entendimento de que, quando a Constituição Federal se refere a “autoridade”, está a se reportar às que exercem função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (art. 14, § 9º). Há opiniões divergentes, as quais entendem que o conceito de autoridade previsto em diversos diplomas normativos (art. 237 do Código Eleitoral c/c art. 22, caput e XIV da LC 64/90) abrange não somente aquelas, senão os conceitos Weberianos de dominação carismática ou ideológica, gêneros do qual o abuso do poder religioso seria espécie.
Para que se possa entender a recente incursão neopentecostal na política deve-se dar um mergulho nas teologias que adotam (prosperidade e domínio), dissecar suas práticas religiosas para, somente assim, ser possível compreender seu objetivo de aliar aos poderes religioso, econômico, financeiro, empresarial e midiático, que já possuem, o poder político. Para além disto, o centralismo e a verticalização das decisões adotadas pelas cúpulas eclesiásticas, a tolher a liberdade dos fiéis quando dos processos eleitorais, mediante a unção de candidaturas “oficiais” que afetam de morte a voluntariedade que deve reger o voto, não podem, igualmente, ser desprezados.
O que se vê, mais das vezes, é um verdadeiro “coronelismo religioso”, impulsionado pelo rádio, televangelismo e redes sociais, detentores de ascendência, influência e persuasão com força transcendental, exercida sobre vulneráveis econômica e intelectualmente, submetidos a verdadeira embriaguez litúrgica de leituras da palavra sagrada como se verdadeiro ditado fosse, pronunciada enfaticamente por mestres da linguagem detentores do “falar divino” que, do alto de seus púlpitos transformados em palanques, falando para imensas plateias que lotam as vistosas catedrais avistáveis nas grandes cidades deste país, as ameaçam com o “fogo eterno” caso não votem naquele “irmão”.
Dando nova significação ao infortúnio, prometem ascensão social a classes sociais sedentas, não pela força do trabalho, como outrora o fizeram os protestantes históricos, senão por barganhas cósmicas, tendo a igreja como intermediária e caixa registradora das transações advindas de dízimos e ofertas mais das vezes heterodoxamente arrecadados , amparados no tripé: cura, exorcismo e prosperidade.
O fenômeno vivido é sociologicamente relevante: segundo o último censo do IBGE (2016), os evangélicos representavam 29% da população brasileira, com real possibilidade de, em 20 anos, se tornarem maioria, o que torna inevitável tenham posicionamento político. Atualmente no Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Evangélica é expressiva a ponto de representar um dos “B” sem os quais não se governa, leia-se, bancadas da “Bíblia”, da “bala” e do “boi”, isto para não falar do inescondível prestígio de que gozam alguns de seus maiores líderes perante o atual mandatário da nação.
O lapidar voto do Sr. Ministro Fachin, ao vaticinar que “inexistem direitos absolutos de maneira que a liberdade religiosa encontra limites em outros direitos fundamentais”, mormente a normalidade e legitimidade das eleições – leia-se: voto livre e consciente (dignidade humana) –, sepulta a desbotada defesa de perseguição (“cristofobia”) sempre utilizada. É preciso que a Justiça Eleitoral imponha amarras, além das já existentes (art. 37, § 4º da Lei 9504/97), à instrumentalização recíproca hodiernamente observada entre partidos políticos e confissões religiosas, a ensejar, inclusive, a ilegal drenagem informal de recursos (art. 24, VIII da Lei 9504/97) advindos dos cofres inflados pela imunidade tributária constitucionalmente assegurada (art. 150, VI, “b” CF).
A fim de que “os órgãos do Estado se comportem como entes em que se pode confiar”, urge seja criada a quarta figura à tríade legislada, qual seja, o abuso do poder religioso, ou, quando menos, que a desincompatibilização de suas atividades de líderes religiosos que queiram se candidatar, ou mesmo a opção de, uma vez lançando-se na política, as igrejas perderem o benefício da imunidade tributária, possam ser alternativas já utilizadas no direito comparado a serem consideradas, para que se continue a “Dar a César aquilo que for de César, e a Deus aquilo que for de Deus” (Mateus 22:21).
Peterson Almeida Barbosa é Mestre em Direito, Especialista em Direito Eleitoral, Promotor de Justiça (MP-SE) com atuação eleitoral desde 1997. Autor do livro “Abuso do Poder Religioso – A Atuação Política das Igrejas Evangélicas” (Editora Lumen Juris). Contato: petersonab@hotmail.com
Fonte: Estadão
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